quinta-feira, 23 de abril de 2009

TERRY RICHARDSON







O Último Tango em Paris



"O aroma de lavanda no corredor. Lavanda e pinho. Poderia dizer que. Mais precisamente. Amadeirado, encorpado, ligeiramente austero. Terça-feira é o prenúncio, talvez a redenção. O aspirador ligado, o toque de alvorada. Novos dias, dias possíveis. Josefa chega e instaura a ordem. Os restos atravessarão compartimentos, túneis, ruas, para serem enterrados longe da vista, as sujeiras escorrerão pelo ralo. A superfície brilhará. Está tudo bem.

- Seu Carlos?

- Precisamos de um multiprocessador desses, Josefa?

- Deus me livre. Preciso de nada disso, não, senhor.

- É incrível, dá pra fazer suco de abacaxi sem tirar a casca!

- O senhor não gosta de abacaxi, não, seu Carlos.

- Talvez comece a gostar. As pessoas mudam, não mudam?

- O senhor pode assistir lá na sala? Só falta aqui e tou agoniada com o médico do menino.

Josefa remove o mofo dos rejuntes, o pó da estante, o limo da pia, mas não a craca depressiva incrustada no sofá do escritório. Olha para ela com pesar e impaciência. A craca, sabendo-se vigiada, fixa-se no canal de televendas. A faxineira, num muxoxo, lhe dá as costas e volta em seguida, nem cinco segundos, com o cano do aspirador em punho, como se apontasse um fuzil. A craca, incrédula ou suicida, zapeia e estaciona na TV Assembléia.

- Vai começar uma votação. Faça de conta que sou um ácaro gigante.

Josefa ri e logo disfarça. Dentadura imensa, branquíssima.

- O senhor tem dormido? Tá com uma cara... Os olhos fundos.

- Perda de tempo. Einstein quase não dormia.

- Tá sol, seu Carlos! Isso de ficar aqui encerrado não há de fazer bem.

- Sol dá câncer, Zefa.

- E o trabalho, seu Carlos?

- É meu ano sabático.

O telefone toca. Toca. Toca. Toca. Toca.

- Não vai atender? Esse trem tocou a manhã todinha.

- Ignora. É engano.

- E o senhor é adivinho agora, é?

- Telemarketing. Eu sei, posso pressentir pelo toque. Ó, escuta:

- Nunca vi gente que nunca atende o telefone. Parece doido.

E o telefone já não toca. Crianças gritam no pátio da escola.

- E se fosse dona Cristina?

- Minha mãe nem sabe o número. E é falta de educação ligar pra casa de alguém sem avisar.

- Deus me livre, que cabeça mais dura! E essa bagunça?!

- Deixa a mesa como tá, Zefa.

- E se fosse dona Ana?

- Não era.

- E se fosse?

- Você tem ido lá?

Ela franze a testa, resmunga, inaudível, sacode a cabeça e abandona o pano sobre a borda do balde. Liga o aspirador. Potência máxima.

- Zefa!

- Poramordejisuis, não me mete no meio disso, não, seu Carlos!

- Só perguntei se tem ido no apartamento da Ana, mulher!

- Nas quintas. Meio dia. Agora me deixa, que o menino tem médico e tou cheia de roupa pra passar.

- Ela tá bem?

- Tá meia assim, né...

- Assim como?

- Meia pra baixo, meia magra...

- E?

- Não quero rolo pro meu lado.

- Ela pergunta por mim?

- Pergunta nada, não, senhor.

- E você tem visto alguém estranho por lá?

- Assim o senhor me complica, seu Carlos. Chispa pra sala, poramordejisuis.

- Então viu!

- Vi nada.

- Viu, sim, te conheço.

- ...

- Zefa!

- O senhor tá impossível! Vai pra praia, seu Carlos, me deixa trabalhar!

- Prefiro a tua companhia.

*

Já passava das duas, os telefones tocavam. E deixávamos que tocassem, deitados lado a lado, ao alcance dos dedos, da próxima onda. Ana ficou calada de repente. Senti que tinha algo a dizer. Algo que eu não gostaria de ouvir. Perguntei, vago e imediatamente arrependido. Eu não entendo como você consegue gozar em silêncio, ela disse, depois de longa pausa, olhando pro teto. Talvez esperasse que eu pudesse mesmo lhe explicar. Ana sempre esperava por explicações que não podia lhe dar. Não conseguia. Acho triste, arrematou, como que pra me punir pela ausência de resposta. E eu persisti numa mudez débil enquanto tentava pegar sua mão. Estava fria e rígida. Ana estava morrendo ao meu lado."
**


Trecho de um conto que fala de certo casal que divide a mesma faxineira depois da separação.
Entre outras coisas.
Ele fará parte de uma coletânea que...
O resto é segredo

Space Age



Lillian Bassman Photography





Encontros e desencontros

''Quanto mais você sabe quem é e o que quer, menos deixa que as coisas o pertubem''

Thom York em território Tupiniquim